Quarentena da Pandemia: Todos no mesmo barco ou cada um no seu barco furado

Não está fácil para ninguém e estamos todos no mesmo barco, cada qual a sua forma, com suas possibilidades e suas limitações próprias de cada realidade. Não vi ninguém imune até agora a tudo isso que está acontecendo. Diante de um cenário tão inédito é natural que a nossa rotina e até nossos sentimentos e emoções “baguncem”.

      Não há “receitas”, nem “fórmulas”, nem “super dicas” que deem conta de, genericamente, encontrar as melhores formas de lidar com todo este momento ímpar na nossa existência. Cada um, cada núcleo, cada sistema, precisa diante do caos (re)encontrar formas criativas de adaptação às novas demandas que se criaram diante desta pandemia.

       São inúmeros os artigos, as lives e as reportagens falando dos impactos da quarentena na vida familiar e na saúde mental das pessoas e muitos deles nos levam a repensar nossas relações com o tempo, com o outro e até com nós mesmos. Como não há “receitas” e como há muita gente já falando dos impactos da quarentena, escolhi apenas trazer à tona algumas questões, que elegi em meio a tantas que têm me capturado:

            - Liberte-se de pesos desnecessários que podem estar pegando na sua consciência. O peso das dificuldades reais que estão aí já são o suficiente para nos deixar estressados e preocupados. Ninguém estava preparado para viver o que estamos vivendo e, por isso, é natural que algumas coisas fujam do nosso controle. Vivemos num modelo de sociedade e mundo que tem um poder gigante sobre nós, o que estamos vivendo só nos prova que a “liberdade” que supúnhamos ter, na verdade, não existe como tal, somos muito mais manipuláveis e determináveis do que imaginamos ser. Portanto, evite querer controlar o que não pode ser controlado. O ser humano tem mania de se sentir onipotente frente a tudo que lhe acomete. O que estamos vivenciando nos mostra que somos pequenos diante do mundo e suas complexidades, portanto, limitados diante das forças externas e ao contexto global que nos envolve. Somos grãos de poeira diante da magnitude do Universo, portanto, reveja, com sinceridade, o que é que você realmente CONTROLA na sua vida e no presente momento, de modo especial? Isso não quer dizer que você não possa ou não deva agir, muito pelo contrário. Ao aceitarmos de forma resiliente as limitações que nos são impostas pela necessidade de sobrevivência e evitando pesos, culpas e sofrimentos desnecessários, fica mais fácil distinguirmos uma coisa da outra e enxergarmos com clareza o que é possível e necessário ser feito, o que melhora nossa capacidade de práticas efetivas e atitudes construtivas. Ou seja, é a sobrecarga (e não a carga) que nos torna impotentes e nos paralisa. Afinal, ser limitado não significa ser impotente, significa ser humano.

- Especialmente às mães, não se culpem. Segue a lógica do que foi dito acima. Mas é interessante destacarmos este ponto, pois, tem muita mulher sofrendo (mais que o habitual) por aí, com o “homeschooling”, com o “home office”, com as tarefas da casa, tudo caindo ainda mais sobre suas costas. Para piorar o acúmulo, vem a (maldita) culpa. A culpa persegue a maternidade e tem raízes nas idealizações históricas e religiosas do papel feminino e da maternidade que, infelizmente, nos enredam até os dias de hoje. É preciso romper com esta lógica que tanto penaliza as mulheres e que revela a sobrevivência desta injusta distribuição de papéis entre o feminino e o masculino. Começar se livrando de culpas e reconhecendo os próprios e nobres esforços, já é um passo à frente.

- Não entre em negação. As dificuldades que estamos vivenciando não vão durar para sempre desta forma que aí está, portanto, disciplina e resiliência frente aos cuidados e privações que precisamos passar é fundamental para que os desafios de hoje não se tornem o caos de amanhã. Os danos econômicos são um dado real e nos preocupam e muito, até porque são mais tangíveis e imediatos para nós. Mas não podemos esquecer de priorizar a vida e a continuidade dela após a pandemia, porque nossa tendência é negar a morte, mesmo que racionalmente temos a certeza que um dia morreremos. A gente vive como se fosse durar para sempre. A vida tem seu valor inestimável, todos concordamos, inclusive está na nossa Constituição Federal, a vida como princípio máximo, mas na prática, no nosso dia a dia não é assim que encaramos, a negação é inconsciente, pois, tememos tanto a morte, que vivemos à negá-la e aí mora um grande perigo. Epicuro bem nos disse: “a morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”. Portanto, cuidado com a negação, quem mais teme é quem mais nega e, no momento, quem mais nega é quem mais arrisca a vida (a sua e a dos demais).

 

-  Faça o que for possível. Ninguém consegue equilíbrio perfeito 100% do tempo. O acúmulo de funções é real, não conseguimos distribuir com perfeição nosso tempo entre vida pessoal, filhos e família, casa, vida profissional. Se você se dedica mais aqui, se dedica menos ali e isto é natural, a gente elege o que faz com o nosso tempo, portanto, precisamos assumir escolhas com mais sinceridade, sem agir como se fossemos vítimas do tempo cronológico. Afinal, na mitologia existem duas formas de conceber o tempo: “Chronos” e “Kairós”.  “Chronos” é o titã do tempo invencível, aquele tempo que rege os destinos e a tudo pode devorar, bem na lógica da nossa relação com o tempo cronológico, sequencial, aquele que se mede e tem natureza quantitativa. Mas também tem o “Kairós”, que representa a experiência do tempo oportuno, certo, supremo, tem a ver com a forma qualitativa de vivenciarmos o tempo, ele simboliza o melhor instante no presente, aquele em que se consegue afastar o caos e abraçar a felicidade.

- Abrace a ideia de coletividade. Somos marcados pelo individualismo até o osso, pois esta é a premissa da nossa sociedade pós-moderna. Por isso, via de regra, o que está calcado na nossa mente é que, quando bate o desespero é “cada um por si e Deus por todos”. No entanto, se adotarmos esta lógica diante do que estamos vivendo hoje, iremos criar um verdadeiro caos para nossa saúde, para nossas relações e até para a economia (o dito “barco furado” do título deste artigo). Nunca foi tão urgente pensar no coletivo. Precisamos proteger uns aos outros, tanto para nos mantermos vivos, quanto para sobrevivermos enquanto sociedade. Não é exercício fácil, mas é necessário, mais do que nunca somos compelidos a treinar nossa (frágil, mas imprescindível) habilidade de sermos sociais e vivermos numa coletividade. Pensar apenas nos próprios interesses pessoais, no momento, é um comportamento autofágico. Acredite, juntos, mesmo que a distância, sobreviveremos melhor a tudo isso.

 

ANA AMÉLIA BEDIN

PSICÓLOGA ESCOLAR E CLÍNICA

CRP 12/05726